domingo, 5 de fevereiro de 2012

Sobre dizer não, inclusive para si mesmo

Uma vez ouvi que caridade às vezes é uma forma de egoísmo. Eu achei isso estranho por muito tempo - quem comentou isso justificou-se dizendo que fazemos um bem a alguém porque não gostaríamos que acontecessem conosco as dificuldades por que passam as pessoas que ajudamos.
Mas aí um padre, certo dia, comentou que no meio de uma missa - que ele mesmo celebrava - entrou um bêbado, maltrapilho, para pedir esmola. Isso já vinha acontecendo há algumas celebrações, e esse padre só observava a reação das pessoas. Uns se incomodavam com o mal cheiro, outros fingiam que não era com eles, e outros davam moedas sem sequer olhar para o rapaz.
Nesse dia, o padre resolveu falar, enquanto alguns davam dinheiro ao mendigo.


"Me desculpem a franqueza. Mas vocês vão todos para o inferno. Isso não é caridade. Nem com eles, nem com vocês"

Palavras um pouco fortes, o padre mesmo admitiu isso quando conversamos. Mas ele fez isso de propósito, para despertar naquelas pessoas o que ele despertou em mim quando me contou esse caso: não sabemos fazer caridade, tantas vezes. Inclusive conosco.
Aquelas pessoas davam dinheiro ao maltrapilho porque queriam se ver logo longe dele. E que tipo de caridade é essa? Não seria de fato um egoísmo, querer voltar à sua zona de conforto, ao seu mundinho particular, com o cheirinho bom do seu perfume comprado no dutty free na viagem à Miami?
A caridade, e isso me ficou mais claro, trata-se de começar a buscar em si mesmo que esse tipo de redoma, a zona de conforto, é uma forma de miséria em que mergulhamos e que impede de evoluirmos.
Se você está pensando agora "mas eu não sou obrigado a aguentar um bêbado fedorento perto de mim, ninguém é", então a sua zona de conforto está gritando agora para permanecer inabalada. Isso não nos transforma em monstros, mas reconhecer que temos essas fraquezas é o primeiro passo da mudança. É o primeiro passo do crescimento pessoal.
Agora pense em quanta coisa abraçamos pra resolver no trabalho e em casa, de modo que acabamos mergulhando numa espiral sem fim, trabalhando nos finais de semana, dormindo preocupados com um cliente, acordando mais cedo pra terminar um relatório antes de uma reunião. Isso não seria outra falta de caridade conosco mesmo? E o tempo que você precisa com sua esposa, seu filho; e o tempo que você precisa para você mesmo? Resumo da ópera: sabemos dizer não? Sabemos dizer não para nós mesmos?
O reflexo disso ouvimos de pessoas que dizem "nunca mais tive tempo de ver um filme", "não vi meu filho crescer", "eu precisava trazer comida pra casa, nunca faltou nada pra minha família"...
Dizer não muitas vezes doi. Doi no fundo da alma, principalmente porque vemos alguém desapontado porque recusamos fazer ou dar a essa pessoa algo que não passa de uma frivolidade, um mimo.
Não acostumamos mal essa pessoa? Não nos acostumamos mal? O quanto não saber dizer não já nos desgastou no trabalho ou em nossa vida pessoal?
Pois é, meu chapa. A caridade começa aí. Não estou fazendo uma apologia ao egoísmo ou ao ócio, mas veja que se nos doamos totalmente aos outros, se acatamos a opinião deles e não paramos pra pensar no que vai ser melhor para nossas vidas, passamos a ser espelhos dos outros, e meu amigo, isso é natural do ser humano: os outros vão se aproveitar disso. Mesmo que assumam que não, mesmo que inconscientemente.
Todos buscamos a felicidade, e é comum lermos por aí que a felicidade está nas pequenas coisas.
Quando reconhecemos isso, percebemos que na verdade essas pequenas coisas são GRANDES coisas, e nossa saúde, nosso bem estar e nossa paz de espírito fazem parte disso.
Não deixe o "bico" dos outros, desapontados por terem ouvido um não seu, desapontar-lhe. Ajudar um maltrapilho a procurar um emprego - que foi o que aquele padre fez depois, é praticamente salvar uma vida. Mas somos muito limitados uma boa parte de nossas vidas para perceber isso. Precisamos geralmente de um trauma muito grande para se dar conta de que o sofrimento e as frustrações fazem parte da vida, e são o que nos fazem evoluir.
Certa vez, um discípulo e seu mestre escalavam uma montanha. Chegando lá em cima, o discípulo disse:
"Como eu gostaria de viver aqui! Que vista linda! Acredito que poucos no mundo tem o privilégio de morar em um lugar como esse..."
O mestre perguntou:
"O que você vê aqui em cima?"
Ao que o jovem respondeu:
"Florestas, animais, água límpida...Sem dúvida uma linda vista!"
O mestre insistiu:
"Perguntei aqui em cima..."
"Ah...entendi...Bom...Vejo pedras...Rochas, nada mais", respondeu o rapaz, já percebendo o que viria pela frente. O mestre concluiu:
"Lá embaixo você vê a vida. Aqui, nada. Conosco é o mesmo: a vida cresce nos vales. No topo, esperamos glórias instantâneas, que alimentam em nós fantasias e nos impedem de continuarmos evoluindo lá embaixo".
Pense nisso. Exercite isso. Pelo seu bem.

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